Playback e Terapia

Neste artigo, o co-fundador do Playback, Jonathan Fox, compartilha a evolução de sua compreensão entre o Playback e a Terapia, através da exploração de duas justaposições separadamente: Playback e o Psicodrama e a Aplicação Terapêutica do Playback.


Os amantes do teatro olham-nos com desconfiança e desafiam: “Isto é terapia?” enquanto, apesar de nossas demonstrações em contrário, os Psicodramatistas e Dramaterapeutas nos reivindicam para si próprios.

Como responder?

Eu sempre senti que a falta de definição do Playback Theatre foi positiva. Mas achar uma correta categoria para ele, tem sido um empecilho para muita gente, desde as pessoas que assistem ao espetáculo, até os próprios fundadores. As raízes do Playback Theatre na tradição oral é uma das causas dessa dificuldade.

As culturas de tradição oral tendem a ser holísticas. A história que os Griot(1) contam são, ao mesmo tempo, uma aula e um entretenimento. A máscara que o dançarino usa é uma máscara para ajudar num processo de cura, assim como uma criação artística.

A cultura moderna é mais especializada. Você pratica a arte ou você pratica a psicoterapia. Se você faz os dois, certamente utiliza-os em diferentes tempos e lugares.

Um segundo problema tem a ver com o significado de psicoterapia, o qual é em muitos aspectos muito limitado para acomodar o Playback Theatre. Por outro lado, o Playback Theatre não se encaixa dentro do modelo de “50 minutos, cada um falando por sua vez” praticado pelos norte-americanos. Ele também não se encaixa no modelo médico de cura ao qual a maioria das psicoterapias adere: não ajuda a resolver problemas mentais e nem é privado e protegido.

Eu quero abordar duas questões: a conexão entre o Playback Theatre e o Psicodrama e a prática terapêutica do Playback Theatre.

O Psicodrama instruiu e influenciou o Playback Theatre em seu estágio inicial de desenvolvimento, mas não o define. A filosofia Moreniana tem muito a oferecer, principalmente no que diz respeito aos conceitos de Espontaneidade e Sociometria. Em algumas regiões, muitas pessoas formadas em Playback Theatre, também recebem treinamento em Psicodrama (inclusive eu mesmo).

Contudo, essa influência não faz do Playback Theatre um filho do Psicodrama.

Em alguns casos, psicodramatistas, dramaterapeutas, terapeutas corporais e outros psicoterapeutas, fazem uso de Playback Theatre como um método auxiliar na sua prática clínica. Essa é uma aplicação muito especializada de Playback Theatre que raramente inclui apresentações e, quase sempre, envolve alguma forma de adaptação para ser conveniente a um setting terapêutico.

Neste sentido, praticado por um terapeuta com objetivos terapêuticos, em um setting terapêutico, é justo dizer que o Playback Theatre é terapia.

Longe disso, o principal uso do Playback Theatre é em ambientes comunitários. Nós o chamamos de teatro, alguns também o chamam de desenvolvimento cultural de comunidades, outros de contação de histórias, alguns de educação e formação, outros ainda, de comunicação. A maioria de nós não o considera uma terapia.

No entanto, o Playback Theatre é amplamente terapêutico. Quanto a isto não há dúvida. Como assim? É assim que eu vejo:

Formação de identidade.

A necessidade de contar a sua história é atávica! Mais ainda, parece que contar a nossa história ajuda muito na definição de nós para nós mesmos. Este processo é compatível com o conceito de “consciência critica” de Boal (2). A antropóloga Barbara Myerhoff fala sobre o valor de “cerimônias de definição”. Ela escreve que “contar histórias de vida é dar às pessoas a oportunidade de tornar-se visível e reforçar a sua consciência reflexiva” Assim, sendo narradores, nós nos tornamos mais claros sobre quem somos: é um ato vital de afirmação.

Diálogo e reconciliação.

Na sequência das histórias contadas por qualquer público, um narrador é sempre responsivo ao que foi dito antes. O comentário de narradores sobre histórias anteriores está em um complexo padrão de alternativas de “falar a verdade” (chamamos essa ligação “a linha vermelha” de um espetáculo). Assim, o Playback Theatre acaba sendo um bom formato para que os grupos possam compartilhar diferentes perspectivas sobre um problema. Além disto, o contexto da “escuta respeitosa” (tão central para o processo de Playback Theatre) é uma condição fundamental para diminuir conflitos. Durante um espetáculo de Playback Theatre nós ouvimos a narração do outro.

Recuperação.

Devido à sua suavidade, o Playback Theatre é uma forma eficaz para um indivíduo (e um grupo) fazer a transição, utilizando-me da formulação de Judith Herman, de “memória traumática” para “memória narrativa”. Claro, o trauma é um problema da psicoterapia. Mas também é um problema social. Na verdade, os líderes civis ficam muitas vezes perdidos quando precisam de ferramentas poderosas para resolver uma crise que atinge uma comunidade, desastre natural ou guerra. Muitas vezes, a solução escolhida é apenas seguir em frente e enfrentar. No entanto, eu estou convicto que, sem encontrar caminho para curar o passado, uma comunidade não pode enfrentar de forma criativa o seu futuro.

Imaginação moral

Este conceito, definido como “construção de paz” pelo Professor John Paul Lederach, envolve “a capacidade de imaginar alguma coisa baseada nos desafios do mundo real e, além disto, gerar o que ainda não existe.” Em outras palavras, precisamos de imaginação moral para antever nosso futuro quando o presente parece ser cheio de problemas e sem expectativas. Para Viktor Frankl, por exemplo, existia um equivalente de imaginação moral que lhe possibilitou (e a outras pessoas) a sobreviver aos campos nazistas da II guerra, enquanto outros sucumbiram, incapazes de ver além do presente conflituoso e sem expectativas. Foi necessário muito de imaginação moral aos negros e brancos na África do Sul para planejar uma transição pacífica para o fim do “apartheid”. O Playback Theatre, por meio da narrativa e dramatização espontânea, possibilita e inspira esta antevisão.

Para a maioria dos psicoterapeutas, o foco em curar indivíduos é apolítico. Contudo, quando o foco é baseado na comunidade, questões de justiça social e opressão chamam a atenção. Quem tem espaço para contar sua história? Quem ouve? Quem não ouve? O valor que o Playback Theatre coloca em prover acesso a qualquer um, mesmo àqueles tradicionalmente silenciosos, transforma-o numa ferramenta poderosa para mudanças sociais. Pode-se dizer, apropriadamente, que o Playback Theatre trata não somente o indivíduo mas também a sociedade. Assim, mesmo que sua abrangência seja maior do que a da psicoterapia, e que não siga algumas de suas diretrizes, o Playback Theatre é efetivo na construção dos egos, na resolução de conflitos, no trabalho com traumas e em ajudar as pessoas a tomar decisões positivas sobre seu futuro. Tudo isto sugere que o Playback Theatre compartilha muitos dos objetivos da psicoterapia.

Existem muitas coisas que não sabemos sobre como o Playback Theatre funciona. Até agora, a maioria das evidências é circunstancial. Simplesmente saber em nossos corações o quanto efetivo o Playback Theatre pode ser, não é suficiente. Nós precisamos desenvolver uma linguagem adequada para uma abordagem que proporcione um ritual de cura para a comunidade.

Precisamos de descrições valiosas e análises detalhadas de um processo que é extremamente dinâmico e efêmero. O que ocorre na realidade com o corpo do narrador quando ele vê sua história? Quais são exatamente os processos de comunicação entre os membros da plateia e os atores? Que tipo de consciência ocorre entre os espectadores de uma apresentação de Playback Theatre? Qual é o efeito de testemunhar a história pessoal do narrador e atuá-la depois? Que papel os atores devem criar, estruturar, ritualizar, para jogar na criação da última experiência positiva dos participantes?

O ator de Playback Theatre israelense Uri Alos, que também é professor de biologia molecular e física de sistemas complexos, tem interesse em investigar como e quando o Playback Theatre trabalha. Outros estudantes estão escrevendo dissertações sobre a mesma questão, sob diferentes ângulos. Este é um desenvolvimento estimulante. Entretanto, continuamos a argumentar que ainda que o Playback Theatre cure, não é terapia e, assim como a dança e o teatro das sociedades tradicionais, nós desafiamos a distinção entre arte e cura.


(1) Interplay, Vol. XVII No. 2 – Dez. 2013. Artigo originalmente publicado, em 2008, na edição Company Partner News do Centro de Playback Theatre©.

Jonathan Fox é um dos fundadores do Playback Theatre e diretor emérito do Playback Theatre Centre. Ele foi o diretor artístico e executivo da companhia original de Playback Theatre, na sua criação em 1975. Autor de “Acts of Service: Spontaneity, Commitment, Tradition in the Non Scripted Theatre” (Tusitala Pub., 1994/2003); organizador de “O Essencial de Moreno” (Ágora, 2002) e o co-editor de “Gathering Voices: Essays on Playback Theatre” (Playback Centre). Em 2008, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da University of Kassel, na Alemanha, por sua realização artística e acadêmica no Teatro.

Tradução: Antonio Ferrara / Revisão: Valéria Brito.

Notas do Tradutor:

1 – griot são contadores de histórias que vivem em muitos lugares da África Ocidental.

2 – “Os anos se passaram e, de repente, eu já viúva, me caso com o “educador da consciência crítica”, Paulo Freire, que influenciou Boal a criar o Teatro do Oprimido: “Representação dramática ou cômica” que tem como fim último o mesmo do Método Paulo Freire de Alfabetização: possibilitar aos oprimidos e oprimidas, pela conscientização, saírem da condição de objeto para se tornarem também sujeitos da História.” Nita Freire (Instituto Augusto Boal – 2011).