Escrito nas areias

A manhã provavelmente seria aborrecida. A reunião foi em uma holding do ramo de construção.

Objetivo: resolver uma disputa familiar e permitir que a transformação de uma empresa familiar em uma corporação fosse tranquila e sinérgica.

Informações básicas: Os dois irmãos, cada um dirigente de uma empresa, após 40 anos, decidiram dividir as empresas e permanecer juntos sob o comando de uma presidente que era uma profissional competente e séria.

A minha impressão foi (imaginei como acho que todos os outros na mesa de reunião) que se os dois irmãos chegassem a um acordo, todos os problemas seriam resolvidos. Mas o caminho acordado, apesar da expressão não-verbal, foi culpar os pobres colegas de trabalho pela falta de “sinergia” (seja lá o que isso possa significar) em vez de enfrentar o conflito real.

Concordei em seguir esse caminho tácito, também consciente de que seria melhor atacar pelos flancos, e deixei o local após ter dado a minha palavra de que a performance criaria uma espécie de “consciência de grupo”, útil para todos os participantes.

Sinceramente, acredito no Playback Theatre como um grande construtor de comunidades, mas me perguntei se isso realmente ajudaria nesse caso. Mesmo assim, mantive a promessa de ajudar a criar essa consciência de grupo, pois estava ansioso para vender nosso trabalho para eles e ter nossa primeira experiência nessa empresa.

Após a reunião, senti um frio na barriga, como costuma acontecer quando corro riscos. Foi estimulante. Afinal, não foi um dia tão chato. Bom.

À tarde, depois de vários telefonemas no ateliê, contas pagas e correspondência respondida, estávamos a caminho de uma apresentação sem fins lucrativos.

O local é um hospital-dia para pessoas que sofrem de problemas de saúde mental e é o foco central das ações psicossociais da cidade, em Embu das Artes, um pequeno balneário turístico próximo a São Paulo.

Atuamos para pessoas carentes sem visar lucro algum. Nossa ideia é que vivamos da comunidade onde estamos, por meio das apresentações do Playback Theatre nas corporações.

No entanto, não queremos agir como “ganhadores de dinheiro”, pois estamos conscientes de que a comunidade deixará de existir se não lhe devolvermos o que necessita. Assim, a nossa parte para a comunidade é fazê-la crescer através do nosso método, que acreditamos firmemente ser uma ferramenta inestimável de evolução do desenvolvimento pessoal e social.

Assim que chegamos iniciamos nossa preparação que incluiu a montagem do palco, maquiagem, aquecimento, etc, o que geralmente leva cerca de 2 horas para ser feito. Fiquei bastante preocupado com a inexperiência de alguns dos atores em relação aos doentes mentais.

Ficamos mais próximos do que nunca e, para acalmar as coisas, usei meu conhecimento em PNL e minha experiência anterior com outro Grupo de Playback, o Grupo Reprise, para contar uma experiência anterior. Meu objetivo era mudar o preconceito contra os pacientes de uma Unidade Ambulatorial.

Esta foi a história que contei:

Fomos contratados para atuar para profissionais do sexo em uma igreja. Isso fazia parte da ideia de contribuir para o benefício da nossa sociedade. Antes de conhecermos as pessoas em questão, ficamos apreensivos sobre que tipo
de cena teríamos que representar.

Abuso físico? Consumo de drogas? Cafetões lutando por dinheiro? Que tipo de atmosfera encontraríamos lá? Perigoso, com certeza! Lá fomos nós.

Fomos pegos de surpresa e ficamos extremamente emocionados com as histórias que contaram. Eram histórias de família, filhos queridos, netos, etc. Não havia história profissional, nada remotamente relacionado à prostituição. Foi uma experiência tão linda que nunca mais esqueci.

Acredito que após contar essa história ao meu grupo, todos se sentiram tranquilos. Mas, eles ficaram?

A apresentação começou e observei atentamente o público (trabalhadores locais, pacientes, cerca de 30 pessoas) tentando encontrar as palavras certas para explicar do que se tratava o nosso trabalho. Pela minha experiência, eu já sabia que algumas palavras seriam inúteis num contexto de gente tão simples, como: playback theatre, roteiro, enredo, etc; isso já havia me alertado para ter cuidado ao me comunicar com eles.

Fui direto para o centro do palco e estava pronto para abrir a boca quando alguém na plateia roubou minha palavra de disse: “Falta a faxineira”. Disse o homem “doente”. Depois de algum tempo (muito longo para mim, muito curto para o mundo), surpreso com o inesperado, voltei-me para ele e perguntei:

“Qual o seu nome?”

“Sebastião”, respondeu ele, olhando para baixo para evitar me encarar.

“Você diz que falta a faxineira. Parece que você acha que a presença dessa pessoa é necessária para começar a apresentação. Podemos aproveitar esse seu momento no palco, Sebastião?”

“Não” foi sua resposta seca, ainda olhando para baixo.

Eu congelo. Eu estava disposto a respeitar sua decisão, mesmo ao custo de comprometer todo o desempenho. Já havia corrido o risco em mais uma atuação com bons resultados no final. Se alguém não nos permitir recriar a sua vida no palco, tal decisão deve ser honrada, pois essa pessoa é o autor e detentor dos direitos autorais. É a vida deles e deve ser honrada.

Mesmo assim, ainda preocupado com a compreensão de Sebastião – parecia cheio de tranquilizantes – insisti mais uma vez:

“Este teatro reproduz as histórias das pessoas na plateia. Você acabou de nos contar uma história. É a história de como você sente falta da faxineira. Você nos deixará fazer isso no palco?”

“Sim”, ele concordou timidamente, mostrando que minha explicação acalmou seus medos.

Eu me senti extremamente aliviado.

Partimos com uma escultura fluida, representando a saudade de Sebastião da faxineira que ainda não havia aparecido.

E a segunda história, fruto da primeira, era sobre preconceito racial e como as pessoas se sentem quando são discriminadas. Essa narradora era uma dos pacientes daquela unidade. Ela era uma mulher negra falando sobre discriminação racial, mas pude sentir como esse sentimento poderia ser
extrapolado para aquele lugar, ou seja, serem tratados como gente “doente”.

Havia outra mulher que continuava a queixar-se de não conseguir fazer o “dever de casa”. No começo pensei que ela queria dizer algo relacionado à escola, mas depois percebi que era sobre tarefas domésticas. Tive a intuição de começar com uma cena completa no Playback Theatre. (Todos os diretores têm isso em comum: saber se é uma cena completa ou não?).

Ela concordou desde que fizéssemos uma cena muito bonita dela e do companheiro, que também estava presente, fazendo tarefas domésticas. Teria que ser uma história de desamparo com um final feliz. Quando questionada sobre o que ela queria dizer com “final feliz”, ela disse que finalmente conseguiria realizar as tarefas.

Eu perguntei a ela como seria; ela respondeu que mudaria suavemente de totalmente impossível para viável, pouco a pouco, passo a passo. E isso foi feito. E um bom trabalho.

E aprendemos que o caminho é para trilhar devagar, passo a passo.

Segunda cena: um terapeuta ocupacional gostaria de mostrar o outro lado das pessoas que trabalham na clínica. Imediatamente, senti que a pessoa em questão é uma daquelas pessoas esquivas e reservadas que escapam pelos dedos para proteger o seu escudo, usando generalizações ou clichés como “Os trabalhadores dedicam-se…” e “Os utilizadores alcançam resultados bem sucedidos”. ..” para manter distância. Antes de convidá-la a sentar-se ao meu lado, solicitei que contasse a sua própria história.

Ela ficou surpresa e sentiu medo. Por um segundo ela parecia estar reavaliando a inconveniência de se expor, mas finalmente se decidiu e testemunhamos uma fusão profissional dura e racional e nos contando sobre seu apoio amoroso e carinhoso para com as pessoas que trabalhou com ela.

Dentro do profissional podíamos ver o ser humano.

Esse ser humano que sofre, se preocupa e se emociona com cada pequeno sucesso vivido pelos pacientes. Os atores novamente se saíram muito bem (tudo bem, sou um grande fã do meu grupo).

Depois de uma pausa, fomos para o terceiro andar. Esta foi uma história maravilhosa: a história de uma grande vitória. Havia esta senhora; simples como todos que estavam lá, mas muito atenciosos. Uma pessoa simpática que queria ver no palco uma cena de sua adolescência quando tentava aprender a ler e escrever. Ela havia perdido os pais e estava sem teto nas ruas de Salvador (cidade do Nordeste); ela tinha cerca de 14 ou 15 anos
e estava aprendendo a ler de uma forma muito peculiar.

Ela costumava pegar jornais velhos e perguntar a algum transeunte o que significavam aquelas palavras. Costumava verificar com outra pessoa, para evitar ser enganada. Ela ia à praia e copiava várias vezes a palavra na areia, usando um pauzinho. Achei isso muito interessante e investigando ainda mais, descobri que conseguiu escrever o próprio nome ao chegar
à certidão de nascimento, como se tivesse passado por um novo batismo.

Após ter aprendido a escrever e a ler desse jeito, ela trabalhou com uma família que se mudou para São Paulo, trazendo-a com eles.

Ela estava contando a história e chorando emocionada ao lembrar de todos os desafios e vitórias que havia vivido na vida. E eu fiz o mesmo, chorando emocionado com sua felicidade e coragem..

Agora ela trabalhava regularmente naquele hospital-dia.

Ela era a faxineira que Sebastião sentira falta no início do espetáculo.

E, com sua bela história, fechou uma apresentação que começou com uma espécie de desamparo, evoluiu para um desejo sincero de sucesso das pessoas e culminou com uma grande vitória pela tenacidade.


Ferrara, Antonio – Publicado na Interplay Volume XII, nr. 1 – September 2002