Caminho para histórias profundas

Como profissionais de Playback, antes de cada espetáculo nós ficamos na expectativa de que as histórias sejam “boas”, ou seja, histórias que nos permitam ir realmente fundo e que não sejam histórias meramente anedóticas.

Temos certeza de que em qualquer ajuntamento de pessoas existem muitas histórias relevantes à espera de serem contadas. Nossas convicções sociais podem até nos relembrar que é importante para todos nós ouvirmos essas histórias.

Na verdade, esta tem sido a pergunta mais frequente que os integrantes das companhias me têm feito ao longo dos anos: o que temos que fazer para conseguir histórias profundas?

Histórias profundas x histórias ricas

O que é exatamente uma história profunda?

Para mim, é aquela que é, em primeiro lugar e acima de tudo, de importância vital para o narrador. É a história que mexe com a plateia, dado que todos a ouvem com muita atenção. Uma história profunda é, fundamentalmente, uma história onde o senso de risco é palpável: o risco do narrador, que se atreve a contá-la ou a esclarecê-la; o risco dos atores ao tentarem encená-la corretamente; e o risco de algumas pessoas da plateia que não “aguentam a barra”. São histórias cruciais, como a morte de uma criança, uma agressão violenta, uma injustiça social grave, pesadelos do cotidiano.

Nem todas são trágicas; com certeza uma história profunda pode ser extremamente feliz.

No entanto, independentemente do tema, quando nos deparamos com uma história profunda, nós sentimos a alma do narrador pairando no ar. Ele se torna altamente vulnerável, o que dá um grande poder aos atores e à plateia. Fica difícil não se deixar envolver. Na verdade, esta tem sido a pergunta mais frequente que os integrantes das companhias tem me feito ao longo dos anos: o que temos que fazer para conseguir histórias profundas?

Nesse sentido, podemos distinguir uma história profunda de uma história rica, uma história que seja banal em sua natureza, porém cheia de possibilidade para os atores.Uma história rica é aquela que viabiliza o poder holográfico do Playback, quando situações como tomar café da manhã ou contemplar um cisne são encenadas com uma beleza tal que podemos alcançar um sentido de totalidade: o todo da vida do narrador e, vicariamente, o todo da vida.

É claro que o ideal é que se juntem os caminhos de uma história rica e de uma história profunda. Com é o ideal que qualquer história contada, em qualquer circunstância, independente do quanto pareça uma simples anedota, possa ser representada de tal forma que todos a experimentemos como pertencente a esse caminho comum.

Esse é o poder do Playback: elevar a experiência comum de uma pessoa comum à condição de um significado universal. Em Playback podemos acreditar que qualquer história, uma vez encenada pode ser ao mesmo tempo, rica e profunda. É um objetivo grandioso.

Leva-se anos para desenvolver uma considerável capacidade artística, capacidade de ouvir para poder criar histórias ricas. No entanto, para respoder ao desafio de histórias profundas é preciso, tudo isso e muito mais. As habilidades precisam estar mais afiadas, maior a experiência de vida e, o mais importante, os atores precisam de uma espécie de força ritual.

Porque as histórias são contadas tão raramente? Porque os narradores temem as consequências negativas inerentes a elas. O narrador arrisca-se a abrir-se para uma dor que pode não ser aliviada. A história pode ser demais para os atores, que podem perder o controle do processo. A história também pode ser demais para a platéia, o que a levaria a rejeitar tanto o narrador quanto à representação.

Quando provocamos histórias profundas, nossos corações como que se partem. É preciso coragem até para olhar. Até nossa visão de mundo pode ficar abalada. Bem trabalhado, este momento adquire o caráter que Richard Schechner chama de transformador (e não apenas transportador, o que geralmente ocorre com o teatro convencional). Mas isso não é para qualquer um.

O espetáculo de uma hora e meia

Quando comecei com Playback, meu sonho era apresentar-me em um teatro de Nova Iorque e ser elogiado pelos críticos. Minha premissa era basicamente artística; meu objetivo era criar espetáculos ricos em imagem, textura, energia e som.

Mas desde o início eu também me senti atraído por histórias profundas, na época nada mais do que uma vaga disponibilidade, quase como uma miragem. Pensava que, se pudéssemos alcançar esse lugar na distante planície, teríamos realmente conseguido alguma coisa; não somente para nós mesmos, mas também para o mundo.

Ao longo dos anos tenho caminhado lentamente na direção dessas árvores pouco definidas. Elas continuam distantes. Sei, porém, que estou mais perto e continuo andando.

Hoje meu sonho é outro: dirigir Playback em um teatro especialmente construído para tal, localizado num parque ou num bosque, com pessoas que tenham disponibilidade de estar lá, pelo menos por meio dia. Nós tomaríamos juntos uma boa refeição e em seguida faríamos Playback.

Neste momento, estou menos interessado na apresentação padrão de uma hora e meia, em um teatro pequeno, porque cada vez mais eu me convenço que ela não fornece condições para as histórias profundas. Histórias ricas, sim, mas não profundas.

Voltemos brevemente à questão do por que as histórias profundas são importantes. Para mim, tem a ver com a sociedade moderna. Muitas pessoas são alienadas, sem um espaço para contar suas histórias. O Playback pode oferecer esse espaço. Enquanto ouvem as histórias, a atenção dos ouvintes fortalece a identidade do narrador e forma os vínculos da comunidade.

Um aspecto positivo da modernidade é que tem havido uma grande aceitação dos direitos humanos universais. Tem sido cada vez mais importante ouvirmos reciprocamente, especialmente aqueles diferentes de nós. E, se você, como eu, provém de um grupo privilegiado, é especialmente importante ouvir as experiências do dia-a-dia de violência, de opressão de classes, de racismo, de sexismo, e de outras formas de preconceito que nem podemos imaginar. Dessa forma, nossa empatia se amplia para além de nosso ambiente.

Mais ainda, acredito que as forças de “lavagem” da história são muito intensas (os ricos e poderosos frequentemente a escrevem em seu próprio benefício), sendo necessário, portanto, criar um espaço para a “história não oficial” daqueles que sofrem e que não são ouvidos. Nossos respectivos países têm segredos do passado que cobrem nosso presente e estreitam nosso futuro. Eu acredito que o Playback, ao desvendar corajosamente esses segredos, seja capaz de ajudar a redimir a “história”.

Algumas vezes as trupes são pressionadas a ajustar o formato do Playback, para que ele se transforme num teatro voltado para soluções, como o Teatro Fórum do Boal. É claro que há lugar para essas abordagens. Mas eu estou também convencido de que ha espaço para o drama que ajuda a criar o diálogo que antecede uma eventual busca por soluções. Esse diálogo, como afirma o cientista e filósofo David Bohm. nos permite estar em contato com o que ele chama de “conhecimento tácito”, que todos nós possuímos enquanto seres humanos. Bohn diz que essa interação é pré-requisito para se criar soluções para a abundância de problemas que temos.

Acredito que o ritual do Playback, que impele os cidadãos a ir além de seus limites normais, é uma forma contemporânea maravilhosa de atingir o diálogo.

Condições para histórias profundas

Prontidão

O que é necessário para serem contadas histórias profundas? Primeiro, é preciso que os atores e a plateia estejam preparados para ouví-las.

Isso é uma “obrigação difícil”, como já foi sugerido. As vidas de alguns atores de Playback ainda são, para eles próprios, tão pouco examinadas e tão pouco estabelecidas, que se torna difícil para eles encarar com equanimidade qualquer tema que apareça. Outros tem uma compreensão psicológica estreita, adequada talvez para uma história que seja subjetivamente profunda para o narrador, mas não para aquela que atinja uma dimensão sócio-política.

A plateia também precisa ser educada para histórias profundas, tanto quanto se acostumar com o ritual do Playback. Mesmo assim, os espectadores de uma apresentação pública podem nunca aceitar plenamente histórias que exijam muito deles.

Intimidade

Em segundo lugar, é necessário que as pessoas do grupo confiem umas nas outras. Em apresentações públicas, o tamanho do teatro é um fator que pode ser impeditivo para termos histórias profundas. Um grupo de quinze pessoas estabelece uma relação de confiança mais facilmente do que um grupo de trinta, para não falar de um grupo de trezentas pessoas. Assim, o que tradicionalmente chamamos de workshop é um formato que se encaixa melhor do que apresentações públicas para termos histórias profundas.

A duração também é um fator fundamental. Um dia é melhor do que duas horas; três dias é melhor do que um.

Também depende a confiança de fatores psicológicos. O diretor/ orientador, especialmente, precisa ser habilidoso para lidar com esses fatores. Em minha experiência, intrigas do passado e condições circunstanciais fazem com que, algumas vezes, seja impossível alcançar o nível de coesão grupal necessário para que se contem histórias profundas.

Sensibilidade à diferença

Em terceiro lugar, um clima favorável para histórias profundas precisa ser criado e mantido por facilitadores que sejam sensíveis à diferença.

Por exemplo, para que uma mulher se sinta confortável ao narrar sua história profunda envolvendo um homem, ela precisará, antes de mais nada, assegurar-se de que o tema homem-mulher possa ser abordado nesse grupo. Além disso, qualquer homem presente também precisa de uma segurança similar antes de assumir verdadeiramente a história da narradora.

Todo grupo abriga diferenças. A teoria Moreniana (o psicodrama e a sociometria) tem sido particularmente útil na minha aprendizagem de como lidar com as questões das diferenças nos grupos. Quanto maior diversidade existente em um grupo, mais difícil será atingir a coesão necessária para compartilhar histórias profundas, mas, por outro lado, é maior o potencial que essas histórias, quando aparecem, tenham um impacto temático amplo, tanto do ponto de vista social como no plano individual e coletivo.

Ambiente Estético

Em quarto lugar, acredito que um ambiente atraente, e mesmo belo, ajude muito a narração de histórias profundas, muitas das quais contém dor e trauma.

A tradição de acolhimento praticada por muitas companhias me deixa muito emocionado. Uma recepção calorosa ajuda o narrador em potencial a enfrentar o desconforto de sua história. Como em toda a arte, a beleza ajuda a fazer com que a verdade seja infinita.

Há ainda muitas outras possibilidades que ainda não descobrimos e não colocamos em prática.

Uma delas é a continuidade do processo. Até o momento, entrar em contato com um narrador depois da apresentação decididamente não faz parte do método do Playback. Depois de um espetáculo onde foram narradas histórias profundas, porém, tavez devessemos entrar em contato com o narrador ou até mesmo com outas pessoas que estiveram presentes. Dessa forma, aceitaríamos completamente o poder transformador do processo de Playback, assumindo, posteriormente à apresentação, alguma forma de responsabilidade pela reintegração dos participantes.

A Playbacker Ushi Sperig, membro de uma trupe alemã, falou, numa entrevista recente, sobre histórias profundas.

Tendo nascido dois anos depois do término da II Guerra Mundial, Uschi nunca conheceu seu pai e dele nunca tinha tido notícias. Só recentemente é que descobriu sua história. Ele era engenheiro e trabalhava para os nazistas na fabricação de foguetes. Como se poderia imaginar, a descoberta do pai trouxe a ela uma mistura de contentamento e horror. O clima na Alemanha, no que diz respeito à guerra, é ainda hoje tão delicado que que Ushi tem hesitado em contar sua história, mesmo no Playback. Perguntei a ela, na entrevista (que será publicada no próximo livro de ensaios baseado na Universidade de Kassel em 1997) o que poderia tornar mais fácil para ela contar sua história. Ela mencionou algumas idéias interessantes.

Uma era muito simples: ao término da história, ser acompanhada desde a cadeira do narrador até seu lugar no auditório. Uschi disse isso porque seu tema ainda é um tabu na Alemanha, hoje e é difícil achar forças para levantar-se, andar até a cadeira e depois voltar para a platéia.

Uschi acha que o narrador precisa fazer esse trajeto inicial sozinho. Entretanto, pensa que se soubesse que alguém a acompaharia de volta ao seu lugar, seu caminho para a narração seria facilitado.

Um segundo ponto diz respeito a pessoas não diretamente envolvidas em sua história mas que fazerm parte crucial da mesma, como os judeus e outros que morreram nas mãos dos nazistas. Uschi sentiu a necessidade de ter não apenas atores incorporando a presença dessas pessoas no plano dramático ou ficcional. Ela quis que alí estivesse também um símbolo concreto da realidade do Holocausto, tal como uma vela, que poderia permanecer acesa em reconhecimento à terrível realidade do sofrimento.

Não há dúvida que outras inovações estão à espera de serem descobertas, na medida em que estamos começando a entender claramente as condições necessárias para que se tenham histórias profundas. Elas incluem, resumindo, workshops que não seriam muito longos nem muito breves, onde se presta atenção para levar em conta diferenças, e a criação de um ambiente estético.

Como atores de Playback, quando desejamos histórias profundas podemos, em vez disso, preferir histórias ricas, porque o domínio das histórias profuncas requer atores com muita habilidade, coragem, comprometimento com a mudança social e um contexto que pode ser completamente diferente daquele do espetáculo tradicional.

Estamos ainda investigando como criá-lo e eu acho que temos um longo caminho pela frente. Mas essa sensação de estar no meio do caminho não deve diminuir a importância de nossa viagem, na medida em que ela preenche a mais importante função do Playback: não somente falar sobre mas, também, personificar esses aspectos de nossa experiência coletiva que os outros escondem.

Fazendo dessa forma, deixamos claro para todos que ousamos levantar as pedras dos corações humanos e abrir os portais da alegria.


  • Texto publicado originalmente no jornal “Interplay”, da International Playback Theatre Network (Vol. IX, 3 de março de 1999)
  • Republicado em FOX, J. and Dauber, H. (editors): Gathering Voices – Essays on Playback Theatre – Tussitala, New Palz, 1999.
  • Republicado em Leituras 35, uma publicação da Companhia do Teatro Espontâneo, em Junho de 2000.
  • Republicado neste site em Março de 2024.